Bebê abandonado, Complexos e Psicologia Profunda

Bebê abandonado, Reflexões Profundas e Psicologia Analítica

Vou aproveitar uma situação real, noticiada em todo o Brasil, ocorrida aqui na região metropolitana de Belo Horizonte (Contagem/MG), para falar sobre os conceitos básicos da Psicologia Analítica percebidos em nosso dia-a-dia, a fim de percebermos com mais clareza como eles funcionam na prática de nossa vivência cotidiana.

Uma experiência tem se repetido desde o início da história humana: o Nascimento. Após a gestação e por intermédio do parto, nasce-se. Nascer é uma experiência humana compartilhada por todos, universal. Pois não damos à luz apenas a outro ser humano, mas a idéias, obras de arte, invenções, teorias, empreendimentos, etc.

E a interminável repetição de determinada experiência se impregna em nossa constituição psíquica, nos remetendo a um Arquétipo. Já nascemos com essa memória ancestral, com esse arquétipo: NASCER.

O Arquétipo (no caso, o nascimento) é uma forma sem conteúdo. Esse conteúdo será preenchido por cada um de nós. Cada um de nós terá um conteúdo subjetivo da experiência do Nascimento.

Gerar algo também é uma experiência que se repete desde o início dos tempos, da história da humanidade. Para algo nascer, ele precisa ser gerado. Gerar um filho, um livro, uma idéia, uma obra, seja esta qual for, é uma experiência arquetípica (comum a todos nós, geral e universal).

Cada um de nós pode reagir de determinada maneira à possibilidade de gerar algo. Alguns podem ser compulsivos em gerar obras de arte. Outros podem sofrer quando geram uma música, sendo bastante dolorosa, difícil e truncada a experiência de compor. Já certas mulheres têm horror a serem mães, a geraram um filho. Não querem o desconforto, a dor, o sofrimento do parto. Outras já se sentem tão divinas e sublimes no processo de gestação e de geração de um filho que encaram com total naturalidade a gravidez e o parto. Enfim, há vários níveis de reação diante da experiência universal de gestar e gerar algo.

Sem querer julgar e muito menos justificar a mãe da menina MICHELE CORDEIRO DOS SANTOS por ter abandonado a filha recém-nascida nas poluídas águas do Ribeirão Arrudas (em Contagem/MG), fico aqui tentando compreender o que a motivou, a levou, a impulsionou a ter essa reação frente ao nascimento de Michele.

Fico aqui tentando imaginar e supor o que se passou no íntimo de ELIZABETE Cordeiro dos Santos para tomar abortivos momentos antes de entrar em trabalho de parto… Será que foi a última tentativa – depois de muitas – para não colocar no mundo algo que gestou e estava gerando?? O que, em sua história de vida, criou, muito provavelmente, esse horror a gerar um bebê?? O que ela viveu, durante sua infância e sua adolescência, que a fez ter aversão a dar à vida a um bebê???

Olhando as imagens da Elizabete (mãe de Michele) nos noticiários de TV e nos sites da internet, mostrando um choro e um desespero repleto de ponto de interrogação, imediatamente me remeteu a uma verdade: quantas vezes, TODOS NÓS, fazemos coisas que vão contra toda razão e vontade, e, depois, ficamos arrependidos, angustiados, sem saber por que, mais uma vez, fizemos algo que não queríamos???

Jung sempre nos atentava para uma verdade: nossas intenções conscientes são, por assim dizer, constantemente perturbadas e atravessadas em maior ou menor grau por intrusões inconscientes.

A Persona de Elizabete poderia querer ser socialmente reconhecida como uma mãe normal, que gera um filho e se dispõe a cuidar dele. Porém, somos muito mais do que nossa Persona mostra ao mundo, à sociedade. Eis nossa Sombra…

Há pontos nevrálgicos em nós, os Complexos!!

Na busca pela data de nascimento e horário em que nasceu, tanto a ELIZABETE como a sua filha MICHELE, me deparei com a reportagem da REVISTA DA SEMANA (edição 7, ano 1 – a mesma com o Luciano Huck na capa e o título A CULPA É DA VÍTIMA). É um bom título esse, que podemos levar para refletir sobre a situação da mãe que abandonou dramaticamente sua filha recém-nascida nas águas do Ribeirão Arrudas. Quem é a vítima nessa história?? A mãe (Elizabete) ou a filha (Michele)?? Ambas? Nenhuma? Não, não vou entrar nessa reflexão, pois inevitavelmente cairia em juízos de valor pessoais que limitariam a visão do todo e a compreensão mais profunda que AMBAS merecem…

Então, vamos voltar aos Complexos (segundo a Psicologia Analítica) para alcançarmos essa visão mais abrangente sobre os conceitos junguianos aplicados em nosso dia-a-dia.

Jung define os Complexos como agrupamentos de idéias no inconsciente, caracterizado por uma qualidade peculiar de SENTIMENTO, talvez DOLOROSA, associado a determinado TEMA, e, com freqüência, se comportando de modo DIAMETRALMENTE OPOSTO AOS NOSSOS DESEJOS CONSCIENTES.

O Complexo está assentado sobre um Arquétipo. Complexo é aquele modo de agir comum, geral, universal aplicado e vivenciado pelas pessoas individualmente. Arquétipo já é o padrão de comportamento instintivo do coletivo. É como se o Complexo fosse o Arquétipo vivido a nível individual, preenchido pelos conteúdos vividos de uma determinada pessoa.

Sendo assim, existe o Complexo Materno e o Arquétipo da Grande Mãe. Ou seja, a eterna experiência com a MÃE é um Arquétipo. Porém, essa experiência vai ganhar matizes peculiares segundo a experiência individual de cada um com a MÃE e as mulheres em geral (complexo materno), bem como com a vivência de posturas femininas/yin: nutrir, proteger, cuidar, amamentar, parir algo que sai de si, seja um filho, um livro, uma idéia, uma obra de arte, uma teoria, um crime, uma brutalidade, etc.

Muitas vezes você, eu e MUITAS pessoas dizemos algo. Porém, quando ocorre uma situação em que deveríamos viver segundo aquilo que dissemos, nós nos comportamos de outra maneira, bem diferente da que conscientemente dizíamos que faríamos/viveríamos. Eis o nosso INCONSCIENTE mostrando que há mais mistérios (e forças/motivações/segredos) por trás de nossa vã consciência do que imaginávamos.

Quantos de nós já dissemos que não mais beberíamos em excesso e lá fomos nós, quase compulsivamente, encher a cara exageradamente. Quantos de nós já havíamos prometidos não mais atender o telefone de fulano de tal porque não queríamos (?) mais apenas transar com tal pessoa uma vez que desejávamos um compromisso sério e lá fomos nós pro motel com ela??? Quantos de nós já havíamos dito que terminaríamos uma relação já desgastada e infeliz e, mesmo não querendo (?), nos mantínhamos ali, quase que mecanicamente, acomodados?? Quantos de nós já não tivemos vontade de enfiar a mão na cara daquele colega de trabalho, de nosso patrão, de nosso funcionário e, em vez disso, ficamos todo sorriso, educadamente, polidamente, nos comportando como se fôssemos amigos íntimos desse colega, desse patrão e desse funcionário??? Quantos de nós já pensamos em esconder determinado desejo e, subitamente, mediante alguma pergunta ou estímulo exterior, soltamos o segredo, revelamos o que tão trabalhosamente nos determinamos a silenciar/ocultar??? Quantos de nós já trocou imprudentemente de palavra a ser usada numa frase que acabou nos mostrando justamente o que, de fato, queríamos falar, ou pelos menos sentíamos, com relação a alguém ou alguma situação???

Enfim, quando algum estímulo exterior (seja uma palavra, uma pergunta, uma imagem, uma música, um tema abordado ao nosso redor) vem tocar num ponto específico que nos incomoda, que mexe conosco e que nos faz irremediavelmente lembrar de uma experiência passada sofrida, dolorosa, angustiante, triste, mal-resolvida com alguma pessoa ou relativa a determinada situação de nossa vida, isso é suficiente para trazer à tona certos conteúdos psíquicos (chamados complexos na terminologia junguiana). E estes vêm acompanhados de determinadas reações fisiológicas e também comportamentais, nem que seja um simples ficar vermelho de vergonha ou nos sentirmos inquietos e “sem-lugar”…

A questão é que determinados complexos ativam fortes vulnerabilidades de nossa estrutura psicológica. E é isso que, creio eu, tenha acontecido com a ELIZABETE. Ela, na sua experiência como filha, talvez tenha sofrido horrores de abandonos e mal-tratos por sua própria mãe. Ou tenha (também SUPONDO) recebido agressões tirânicas, ultimatos atemorizantes, mordazes críticas, ameaças e rejeições profundamente doídas quando tentou colocar algo dela, sua marca pessoal, em alguma coisa que criou…

Talvez experiências nesse nível tenham cunhado em sua psique a associação de que: “gerar algo meu é sinônimo de sofrimento, dor, abandono, rejeição, crítica, violência, agressão, etc. Então, não posso colocar minha filha no mundo, porque não suportarei essas reações, tal como vivi nesse, naquele e naquele outro episódio de minha vida. Ahhh… como doeu… não quero viver isso NUNCA mais…”

Sei que, aparentemente, NADA é justificável/justificativa para ela ter destinado sua filha recém-nascida à imundície do Ribeirão Arrudas. Mas, pra mim, pode ser compreensível. E não creio que apenas colocar o dedo em riste sobre a ELIZABETE, condena-la e querer que ela seja execrada, violentada, detonada, infernizada por milênios seja o melhor caminho. Se não compreendermos os porquês, ou seja, as causas que PODEM ter impulsionado ELIZABETE a abandonar sua filha (e, assim, buscar meios de “cura-las” na própria ELIZABETE e em outras futuras mães), estaremos apenas abrindo campo para tal experiência de abandonar filhos recém-nascidos se repetir ad infinitum.

Daí a importância de compreendermos esses nossos complexos, porque todos nós os possuímos. E eles, muitas vezes, podem nos possuir, por mais que conscientemente consideremos que não. Pois foi justamente esse complexo materno altamente “destrutivo” da ELIZABETE que se apossou dela. Sua consciência de que esse ato de abandonar filho recém-nascido é errado foi INSUFICIENTE diante da força/carga afetiva/emocional (no sentido junguiano do termo, e não “amoroso” do senso comum) de tal complexo, pois este predominou e a levou a fazer o que fez.

Uns podem dizer que foi obra do demônio, do espírito obsessor, da insanidade, da irresponsabilidade dela, etc. Porém, na minha perspectiva, todas essas possíveis causas apenas se manifestam se uma outra causa-mor deu brecha: a causa psicológica, interna, de quem é “vítima” destas… “Vítima”… Existe vítima?? Bem, eis uma polêmica que não quero entrar agora. Meu objetivo foi apenas demonstrar o quanto o inconsciente pode nos levar para caminhos que conscientemente não “queríamos”… E a Psicologia Analítica pode ser uma belíssima ferramenta para compreendermos nossos complexos a fim de, depois de muita auto-observação e terapia, fazermos um uso construtivo de seus conteúdos, canalizando-os de maneira menos sabotadora, mais integradora e saudável – para nós e para a sociedade.

Termino essa reflexão didática com a frase do líder comunitário da Vila Dom Bosco (onde a recém-nascida foi encontrada), Cinézio Rossi Vieira: “Conheço ela (a Elizabete) há seis anos. Sempre me pareceu uma moça muito boa. Estava desempregada e vivia com a mãe, em dificuldades. Claro que ninguém aprovou sua atitude, mas não podemos julgar ninguém sem saber o que se passa na cabeça de cada um.”

Estado de Minas, Domingo, 7 de Outubro de 2007, página 26.

Beijos profundos nocês….

Yub

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